quinta-feira, 7 de maio de 2015

"Patrulha para policiar o espaço?", artigo de José Monserrat Filho

.
Patrulha para policiar o espaço?

“Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a ninguém.” Ditado popular português

José Monserrat Filho *

O Chefe do Comando Espacial da Força Aérea dos Estados Unidos (EUA), General John Hyten, declarou em programa de televisão que “a China, em breve, poderá aperfeiçoar tecnologias para atacar ou desmontar sistemas de satélites”, noticiou a agência UPI, em 27 de abril.

O militar acrescentou que “um ataque a satélites que garantem vantagens estratégicas às Forças Armadas americanas nos campos de batalha e no mar minaria a segurança dos EUA”.

Segundo a notícia, especialistas em segurança espacial – cuja origem não é dita – creem que a Rússia desenvolve tecnologias de armas satelitais similares às da China. Um dos motivos dessa crença seria o lançamento de satélites anônimos pela China e a Rússia nos últimos meses. Tais saté-lites poderiam se conectar com outros satélites para repará-los ou para destruí-los.

A informação da UPI diz ainda que a China e a Rússia expressam os mesmos temores com relação à capacidade espacial americana: “A maioria dos especialistas concordam que os EUA estão propensos a desenvolver satélites fortemente armados.”

Se essa notícia for verdadeira, estamos claramente numa corrida armamentista espacial, o que pode significar o surgimento de nova “Guerra Fria”. Ou seja, o clima não parece nada propício para se alcançar um consenso sobre segurança espacial, por exemplo.

Dois dias depois, em 29 de abril, a Rússia anunciou a criação de uma “patrulha espacial” com a missão de garantir a segurança nas órbitas utilizadas pelos países, inclusive a Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), e assegurar a ordem legal no espaço – conforme nota de Alexander Mokletsov da agência russa Sputnik.

A patrulha espacial russa, segundo a nota, usará um foguete Soyuz ajustado para realizar vo-os de observação, para perseguir transgressores do Direito Espacial Internacional e até mesmo para coletar lixo espacial – afirmaram especialistas do Centro de Segurança e Desenvolvimento Espacial e Galáctico, da Rússia.

Ainda segundo a nota, “as unidades da patrulha espacial exercerão funções comuns aos ser-viços semelhantes que em breve aparecerão nos EUA, Canadá, China e outros países”. Adiciona-se que esse sistema “usará extensa rede de satélites e estações terrestres para rastrear quem viola as normas de Direito Internacional e, em particular, o código de tráfego espacial”.

Esse código, frise-se, ainda não existe e seu projeto acaba de ser aprovado como novo tema de debate na próxima reunião do Subcomitê Jurídico do Comitê das Nações Unidas para o Uso Pa-cífico do Espaço (COPUOS), em 2016. E certamente muitas Luas passarão antes que os países da Terra cheguem a um acordo para pôr em vigor um código de tráfego espacial1.

E também, ao contrário do que diz a nota, não há indicação alguma de que “as Nações Uni-das estejam considerando (o exame de) um acordo internacional sobre segurança e a ordem jurídica nas órbitas em torno da Terra”.

 A primeira pergunta a fazer é: Pode um país em particular – seja Rússia, EUA, Canadá, China ou qualquer outro – criar uma patrulha para policiar o espaço e perseguir os violadores das normas espaciais?

Não, não pode, pois o Tratado do Espaço2, de 1967 – a lei maior das atividades espaciais – determina em seu Artigo 3º que tais atividades “deverão efetuar-se em conformidade com o Direito Internacional, inclusive a Carta das Nações Unidas, com a finalidade de manter a paz e a segurança internacional e de favorecer a cooperação e a compreensão internacionais”. E a Carta das Nações Unidas atribui ao Conselho de Segurança da organização o dever de garantir essa finalidade, e não concede a nenhum país em particular o direito de zelar pela segurança dos demais países., nem de vigiar o cumprimento das leis espaciais.

A Carta adota o princípio e o sistema ampliado de segurança coletiva. O todo é que garante a segurança das partes, não é esta ou aquela parte que garante a segurança do todo. Ou seja, as Nações Unidas, atuando em nome de seus países membros, garantem a paz e a segurança global. O sistema nem sempre é respeitado e nem sempre funciona como deveria, mas é o que o mundo dispõe hoje legalmente estabelecido. Cedo ou tarde, a segurança coletiva poderá ser devidamente reconhecida e aplicada. Nada é mais lógico, compatível e apropriado à globalização em que hoje vivemos do que a ideia da segurança de todos assegurada por todos.

A iniciativa de um país criar uma patrulha espacial é, sem dúvida, controversa e polêmica, ainda que a Rússia não tenha se arrogado direitos exclusivos no caso e tenha reconhecido desde logo a possibilidade e, portanto, o direito de outros países seguirem o mesmo caminho.

Mesmo assim, o projeto gera muitos perigos. Ignora a necessidade urgente de segurança co-letiva e é insustentável, tanto política, como legalmente. O espaço exterior usado cada vez mais por países, organizações e empresas da Terra não ficará, necessariamente, mais seguro apenas por ser policiado por patrulhas espaciais de vários países, ao mesmo tempo. Quem garante que entre elas sempre reinarão relações de paz, confiança e lealdade? E se elas não se entenderem e entrarem em conflito para ampliar o espaço de atuação de cada uma?

Na melhor das hipóteses, a Rússia, ao criar a tal patrulha espacial, estaria querendo incentivar as demais potências a criarem uma patrulha global, sob a égide e o comando  das Nações Unidas. Esta, sim, seria uma ação construtiva e consequente, tanto quanto o projeto de “Tratado sobre a Prevenção de Instalar Armas no Espaço Exterior e a Ameaça ou Uso da Força Contra Objetos Espa-ciais”3, apresentado pela própria Rússia e pela China na Conferência de Desarmamento, em 2008.

Há uma nova guerra fria aquecendo-se em horizonte próximo. O mais conveniente e racional, nesta hora, é evitar pôr mais lenha nessa fogueira em potencial.

* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB). Esse artigo reflete apenas a opinião do autor.

Referências

1) Ver proposta no site
2) Ver texto completo no site da SBDA: www.sbda.org.br.
3) Ver texto completo em inglês no site: www.peaceinspace.com/the-treaty.

Nenhum comentário: