segunda-feira, 4 de junho de 2012

"Mineração em asteróides", artigo de José Monserrat Filho


Mineração em asteroides: questões legais 

José Monserrat Filho, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Chefe da Assessoria de Cooperação Internacional da Agência Espacial Brasileira (AEB)


“A desigualdade não é apenas um incômodo moral: é ineficiente.” Tony Judt, in O Mal Ronda a Terra, Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 171.

A mineração em asteroides está sendo apresentada como nova corrida do ouro, similar à ocorrida no Oeste (far West) dos Estados Unidos (EUA) no século XIX. A perspectiva de alguns investidores é de entrar numa empreitada extremamente difícil e cara, e dela sair multimilionário. De olho nessa riqueza ainda inestimável, já surgiu a empresa Planetary Resources, sediada em Washington, a capital norte-americana, o que não é pouca coisa.

Há, porém, uma diferença essencial entre as duas corridas: uma era uma questão nacional, norte-americana, e a outra é uma questão internacional. A primeira podia ser impulsionada – como o foi – pelo governo do país, os EUA, soberano em seu território. Já a segunda, a de agora, requer necessariamente decisão bem mais ampla, multilateral, discutida e aprovada pela comunidade internacional de países, de preferência através da Organização das Nações Unidas (ONU), que, conforme sua Carta, tem por fim, entre outros, o de “empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos”.

A mineração em asteroides, cumpre frisar desde logo, é atividade espacial, pois desenvolve-se no espaço exterior, que inclui os corpos celestes. O espaço exterior fica fora, além, do espaço aéreo, onde cada país exerce sua jurisdição e controle. Embora os países ainda não tenham logrado delimitar por consenso os dois espaços, sabe-se perfeitamente que o espaço exterior não pode ser submetido à soberania de qualquer país. Nenhum deles tem o direito individual ou coletivo de dominar ou governar o espaço exterior. Essa área é de interesse e uso comum de todos os países da Terra, como os mares e oceanos (à exceção das águas territoriais, litorâneas, dos países).

Tudo isso foi estabelecido, de comum acordo, no “Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, inclusive a Lua e demais Corpos Celestes”, de 1967, em pleno vigor, ratificado hoje por 101 países e firmado por outros 26 – entre eles todos os países envolvidos com programas espaciais. A ONU, vale lembrar, tem 192 países membros. Louvado e aceito universalmente, o Tratado do Espaço, nome pelo qual se tornou conhecido, é considerado norma costumeira de vigência global, válida para todos os países que ainda não o firmaram nem ratificaram.

Numa análise jurídica, é preciso, antes de mais nada, definir o que é legalmente um asteroide. Sobre os objetos naturais existentes no espaço exterior, o Tratado do Espaço menciona apenas os corpos celestes, como está em seu próprio título. Por isso, podemos e devemos, até eventual decisão internacional em contrário, definir os asteroides como corpos celestes, do mesmo modo que a Lua, Marte e outros planetas. O fato de eles serem maiores que os asteroides não altera nada. Tamanho também aqui não é documento. Hoje não parece haver dúvidas quanto a isso.

Mas vejamos que princípios e normas do Tratado do Espaço são claramente aplicáveis aos planos de mineração em asteroides, ajustando cada um de seus artigos a esse caso concreto:

Artigo 1º, § 1 – Como forma de usar os corpos celestes, a mineração dos asteroides deve “ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja  o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade”.

Artigo 1º, § 2 – Os asteroides poderão ser explorados (estudados) e usados livremente por todos os países “sem qualquer discriminação, em condições de igualdade e em conformidade com o direito internacional, devendo haver liberdade de acesso a todas as regiões dos corpos celestes”, ou seja, a todos os asteroides.

Artigo 2º – Os asteroides, como todo corpo celeste, não podem “ser objeto de apropriação nacional por proclamação de soberania, por uso ou ocupação, nem por qualquer outro meio”.

Artigo 3º – As atividades dos países no uso dos asteroides devem efetuar-se segundo “o direito internacional, inclusive a Carta das Nações Unidas, com a finalidade de manter a paz e a segurança internacional e de favorecer a cooperação e a compreensão internacionais”.

Artigo 6º – Cada país responde internacionalmente (ante os outros países) pelas atividades nacionais realizadas em asteroides tanto por suas entidades públicas, quanto por suas empresas privadas, e deve velar para que tais atividades nacionais se efetuem segundo o Tratado do Espaço. As atividades das empresas privadas nos asteroides devem autorizadas e vigiadas continuamente pelo país sede da empresa. Daí que, para minerar num asteroide, a empresa privada Planetary Resources, com sede nos EUA, deve ser autorizada e vigiada pelo governo norte-americano.

Artigo 7º – O país lançador (que promoveu o lançamento ou de cujo território ou instalações o lançamento foi realizado) de um objeto a um asteroide responderá pelos danos que esse objeto e seus componentes causarem a outros países ou às suas pessoas naturais, na Terra, no espaço aéreo, no espaço exterior, inclusive nos corpos celestes, ou seja, no próprio asteroide.

Artigo 8º – O país que registra em seu nome um objeto lançado a um asteroide mantém sob sua jurisdição e controle esse objeto e o pessoal a bordo dele, durante a estada no asteroide. Os direitos de propriedade sobre os objetos lançados a um asteroide e seus elementos constitutivos permanecem inalteráveis enquanto esses objetos e seus elementos se encontrarem no asteroide e durante seu retorno à Terra. Tais objetos ou seus elementos constitutivos encontrados além dos limites do país de registro devem ser restituídos a esse Estado, que por sua vez deve fornecer, sob solicitação, os dados de identificação antes da restituição.

Artigo 9º – Na exploração e uso dos asteroides, os países devem obedecer aos princípios da cooperação e da assistência mútua e exercer suas atividades nos asteroides levando na devida conta os interesses correspondentes dos outros países. Os países devem explorar (estudar) os asteroides de modo a evitar os efeitos prejudiciais de sua contaminação e as modificações nocivas no ambiente da Terra, resultantes da introdução de substâncias extraterrestres, e, quando necessário, devem tomar as medidas apropriadas para este fim. Se um país tem razões para crer que uma atividade ou experiência realizada num asteroide por ele próprio ou por suas entidades públicas ou privadas pode prejudicar as atividades dos outros países na exploração e uso pacífico dos asteroides, deve fazer as consultas internacionais adequadas antes de levar a cabo a mencionada atividade ou experiência. E qualquer país com razões para crer que uma experiência ou atividade realizada por outro país num asteroide é capaz de prejudicar as atividades de exploração e uso pacífico dos asteroides, pode solicitar consultas sobre a referida atividade ou experiência.

Artigo 11 – Para favorecer a cooperação internacional na exploração e uso dos asteroides, os países que desenvolvam atividades num asteroide acordam, na medida do possível e realizável, em informar ao Secretário-Geral da ONU, ao público e à comunidade científica internacional da natureza da condução de tais atividades, o lugar onde serão exercidas e seus resultados. O Secretário-Geral da ONU deve assegurar a difusão dessas informações, tão logo as receba.

Artigo 12 – Todas as estações, instalações, material e veículos espaciais que se encontrarem num asteroide serão acessíveis, em condições de reciprocidade, aos representantes dos outros países. Estes representantes devem notificar com antecedência qualquer visita projetada, a fim de que tais consultas possam ser realizadas com o máximo de precaução, para garantir a segurança e evitar perturbações no funcionamento normal da instalação a ser visitada.

Artigo 13 – O Tratado do Espaço se aplica às atividades dos países na exploração e uso de todos os asteroides, sejam elas realizadas por um país ou grupo de países, o que inclui suas empresas privadas  devidamente autorizadas.

Essa foi uma adaptação formalmente rigorosa do Tratado do Espaço ao caso específico dos asteroides. Vale conferir com o texto original ().

Esclareça-se que, quando se fala em “exploração e uso” dos corpos celestes e, portanto, também dos asteroides, o que se tem em vista é o estudo e o uso dos meios locais necessários para manter a missão ou empreendimento. Não se inclui aí a ideia de exploração industrial e/ou comercial. O termo correto para isso – “explotação” – só começou a ser empregado no Acordo da Lua, como se verá logo a seguir.

O Tratado do Espaço em momento algum se refere à explotação ou à exploração industrial e/ou comercial das riquezas dos corpos celestes e, por conseguinte, dos asteroides. Quem se ocupa disso é o “Acordo que Regula as Atividades dos Estados na Lua e em Outros Corpos Celestes”, conhecido como “Acordo da Lua”, aprovado por unanimidade pela Assembleia Geral da ONU em 1979 e vigente desde 1984, mas hoje ainda com pouco apoio, ratificado por apenas 13 países e assinado por quatro.

Em seu artigo 1º, o Acordo da Lua estabelece que suas cláusulas “se aplicarão também aos outros corpos celestes do sistema solar, excluída a Terra”; em seu artigo 2º introduz o conceito, até então inédito, de “explotação da Lua”, o que equivale a dizer “explotação de todos os corpos celestes, inclusive os asteroides”; e, em seu artigo 8º determina que os países “podem desenvolver suas atividades na explotação e no uso da Lua em qualquer lugar de seu solo ou subsolo”, o que significa também que “os países podem desenvolver suas atividades na exploração e uso dos asteroides em qualquer lugar de seu solo ou subsolo”.

O artigo 7º, por sua vez, lavra um dever ecológico: “Ao explorar e usar a Lua (e, portanto. qualquer corpo celeste, inclusive asteroides) os países devem adotar medidas para  impedir o rompimento do equilíbrio existente em seu ambiente, seja pela introdução de modificações nocivas a este meio, seja pela contaminação perigosa por substâncias estranhos ao meio, ou de qualquer qualquer outro modo.” E “devem adotar também medidas para evitar alterações indesejáveis no ambiente da Terra pela introdução de materiais extraterrestres ou de qualquer outro modo”.

Se o Acordo da Lua se aplica aos asteroides, como parece claro, seu artigo 11, § 1, pelo qual a Lua e seus recursos naturais “são patrimônio comum da humanidade”, vale também para os asteroides e suas riquezas minerais. Para os asteroides, vale igualmente o § 4, pelo qual “o solo e o subsolo da Lua, bem como partes do solo ou do subsolo e seus recursos naturais, não podem ser propriedade de qualquer Estado, organização internacional intergovernamental ou não-governamental, organização nacional ou entidade não-governamental, ou de qualquer pessoa física; o estabelecimento no solo ou subsolo da Lua de pessoal, veículos, material, estações, instalações e equipamentos espaciais, inclusive obras vinculadas indissoluvelmente a seu solo ou subsolo, não cria o direito de propriedade sobre seu solo ou subsolo e suas partes; esses dispositivos não devem prejudicar o regime internacional referido no § 5 deste Artigo”. Esse § 5, de extrema importância, manda estabelecer um “regime internacional (...) para regulamentar a explotação dos recursos naturais da Lua, quando essa exploração estiver a ponto de se tornar possível”.

A mineração de um asteroide é, pois, bem mais complicada, politica e juridicamente, do que pode parecer à primeira vista. Não pode ser empreitada de uma ou mais empresas privadas apenas por decisão própria, ainda que controladas por seus países. Trata-se de atividade intrinsecamente internacional, com incalculável impacto global. Embora possa trazer recursos naturais fabulosos à Terra, é também capaz de afetar profundamente o mercado mundial de minerais e a economia do planetal, ampliando ainda mais a desigualdade entre os países. Por isso, ela não pode deixar de ser cuidadosa e rigorosamente regulamentada, não só pela legislação interna deste ou daquele país, mas sobretudo pela legislação internacional, com ampla participação de toda a comunidade de países.
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