sábado, 13 de fevereiro de 2016

"Mil páginas sobre Direito Espacial", artigo de José Monserrat Filho

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Mil páginas sobre Direito Espacial

José Monserrat Filho *

“... apesar dos objetivos expressos de comercialização de dados e produtos do sensoriamento remoto, o número de restrições ao acesso está aumentando. Este fato levou estudiosos a pedirem uma reorganização das normas internacionais que regem a distribuição e o uso dos produtos do sensoriamento remoto.” Fabio Tronchetti, um editores do livro aqui apresentado.

O volumoso “Manual de Direito Espacial” (Handbook of Space Law) foi editado, em 2015, por dois juristas europeus com doutorado na Faculdade de Direito da Universidade de Leiden, fundada em 1575 nos Países Baixos (Holanda). Hoje eles lecionam fora da Europa: Frans von der Dunk (FvdD), dos Países Baixos, é professor na Universidade de Nebrasca, nos Estados Unidos (EUA), e Fabio Tronchetti (FT), da Itália, professor associado da Escola de Direito do Instituto Tecnológico Harbin, na China. Eles contaram com os textos e a competência de dez colaboradores de alto nível, como vemos abaixo. O volume, com mil páginas, é bem mais que um manual.

O livro aborda os temas hoje clássicos do Direito Espacial. Basta ver os títulos de seus 19 capítulos: 1) Antecedentes e História do Direito Espacial, de Peter Jankowitsch (Áustria); 2) Direito Espacial Internacional, de FvdD; 3) Direito Espacial Nacional, de Irmgard Marboe (Áustria); 4) Direito Espacial Europeu, de FvdD; 5) Organizações Internacionais no Direito Espacial, de FvdD; 6) Aspectos Jurídicos do Uso Militar do Espaço Exterior, de FT; 7) Aspectos Legais dos Serviços de Lançamento e Transportes Espaciais, de Peter van Fenema, dos Países Baixos; 8) Aspectos Legais dos Satélites de Comunicação, de FvdD; 9) Aspectos Legais dos Satélites de Sensoriamento Remoto, de FT; 10) Aspectos Legais dos Satélites de Navegação; de Lesley Jane Smith, do Reino Unido; 11) Aspectos Legais dos Voos Tripulados e da Operação de uma Estação Espacial, de Carla Sharpe, da África do Sul, e FT; 12) Aspectos Legais dos Voos Tripulados Privados, de FvdD; 13) Aspectos Ambientas das Atividades Espaciais, de Lotta Viikari, da Finlândia; 14) Aspectos Legais do Uso de Recursos do Espaço, de FT; 15) Aspectos do Comércio Internacional nos Serviços Espaciais, de FvdD; 16) Ventures Financeiras Espaciais, de Mark Sundahl, dos EUA; 17) O Seguro no Contexto das Atividades Espaciais, de Céline Gaubert, da França; 18) Os Direitos de Propriedade Intelectual no Contexto das Atividades Espaciais, de Catherine Doldirina, do Canadá; e 19) Solução de Controvérsias nas Atividades Espaciais, de Maureen Williams, da Argentina.

No prefácio, Rusty Schweickart (1035-), astronauta americano, tripulante do Apolo-9, nota que "com a análise mais abrangente e holística dos aspectos legais e regulamentares das atividades espaciais e as principais aplicações espaciais até à data, este manual aborda tais aspectos legais e as principais aplicações no espaço, com base em perspectiva ampla e estruturada sobretudo a partir da dicotomia entre o caráter do Direito Espacial Internacional (DEI) orientado pelo Estado e a crescente comercialização e privatização das atividades espaciais – a mudança de paradigma mais fundamental que ocorreu nessas atividades desde o início da Era Espacial”.

Na realidade, a comercialização e a privatização das atividades espaciais, sobretudo nas grandes potências, também é orientada e apoiada pelo Estado por meio de leis, investimentos e encomendas. Ademais, na maioria esmagadora dos países, inclusive no Brasil e em toda a América Latina, o Estado desempenha papel essencial nos programas espaciais nacionais. A meu juízo, talvez se deva definir como mudança de paradigma o extraordinário fortalecimento de corporações privadas financeiras e industriais, que ganharam poder econômico e político sem precedentes em alguns países, com forte impacto global.

O Capítulo 2, sobre o DEI aparece como coluna vertebral do livro. FvdD apresenta sua visão geral desse ramo do Direito. Trata de sua evolução, seus tratados, seus problemas mais debatidos, regimes jurídicos que o cercam. Nas conclusões, ele escreve que “o espaço começou a acolher todo tipo de atividades humanas, ou melhor, a desempenhar papel fundamental nelas – militares, científicas, administrativas, combate ao crime e ao terrorismo, comerciais e humanitárias – e, assim, na regulamentação do comportamento de todos os seres humanos que delas participam”.

“O espaço torna-se de fato o quarto domínio (realm) para a humanidade se aventurar, e, presumivelmente, o último, após as massas de terra, os oceanos e o espaço aéreo”, esclarece e lembra: Não por acaso, não faz muito os militares dos EUA começaram a considerar seriamente a criação do quarto ramo das Forças Armadas – próximo do Exército, da Marinha e da Força Aérea – a Força Espacial. Ao mesmo tempo, o autor, estudioso do Direito Cibernético, levanta a hipótese de que o âmbito cibernético (cyber) poderia constituir um domínio próprio. Parece que as atividades cibernéticas, pelo menos até agora, são de base terrestre. Podem também, é certo, ser exercidas nos espaços aéreo e exterior, mas sob controle e no interesse de centros e instituições sediados na Terra. No espaço exterior, a impressão é de que poderão gerar efeitos profundamente deletérios.

FvdD diz que “para uma compreensão adequada do modo como a lei e a regulação – que também incluem a legislação nacional no âmbito do DEI – têm impacto sobre todas as actividades espaciais ou, pelo menos, sobre um elemento ou aspecto substancial delas, as análises e propostas destinados a posterior desenvolvimento nunca devem se abster de levar efetivamente na devida consideração o amplo escopo do Direito Espacial lato sensu [no sentido amplo]”.

Número limitado mas suficiente de questões – No entender de FvdD,“fora das muitas sobreposições, inconsistências ou lacunas por entre a miríade de regimes legais que interagem [nas cercanias da DEI], este Capítulo e até este livro podem lidar apenas com um limitado número das questões mais importantes, mas suficiente, presume-se, para entender os mecanismos básicos a respeito” [da matéria]. Na verdade, o livro cobre um sem-número de temas históricos e atuais.

FvdD conclui, ironizando a variedade de regimes jurídicos que cercam o DEI: “Notando que a maioria dos atores, certamente países e entidades privadas menores, que não empregam grandes burocracias, prefeririam ser confrontados por, pelo menos, um conjunto coerente de direitos e obrigações, em vez de por uma simples lista de vários regimes aplicáveis a seu campo específico de atividade sem sequer contar com um kit faça-você-mesmo para dar sentido à interação dos regimes, e onde um pode ter precedência sobre o outro, é claro que ainda há muito a fazer nesta área fascinante de direito internacional público.” Permito-me citar um exemplo de regime jurídico: o MTCR (Missile Tecnology Control Regime), Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis, criado em 1987 por iniciativa dos EUA e aliados, que bloqueou durante vários anos a construção do Veículo Lançador de Satélites (VLS-1) do Brasil, sob a alegação de ser um míssil de longo alcance para uso militar.

Sobre o antigo e polêmico tema da definição e delimitação do espaço, FvdD lembra frase de Manfred Lachs (1914-1993 – jurista polonês, ex-presidente da Corte Internacional de Justiça, ligada às Nações Unidas), escrita em artigo de 1992  – “talvez esteja se aproximando o momento em que uma decisão sobre a definição da fronteira entre as duas dimensões terá que ser tomada” – e se anima a opinar: “Parece provável que seria necessário um acordo mais formal sobre a fronteira entre os espaços aéreo e exterior, presumivelmente a uma altitude de cerca de 100 km – se isso não for  desenvolvido como norma de Direito Internacional Consuetudinário, onde o dito acima poderia ser considerado como, pelo menos, tendência inequívoca de acordo sobre tal norma.”

O bloqueio do avanço dos serviços comerciais de lançamentos espaciais – Peter van Fenema revela no Capítulo 7: “O desenvolvimento dos serviços de lançamento [de foguetes] como parte do comércio internacional regular, comparado ao transporte aéreo internacional, continua bloqueado por razões militares e de segurança nacional em torno dos veículos de alta tecnologia e tecnologias sensíveis usados para esse fim. Tais aspectos e o pequeno número de empresas estatais e privadas que, como resultado, prestam esses serviços – e o fato de a maioria das operações não envolverem a passagem por fronteiras nacionais – também sugerem a criação de uma organização internacional intergovernamental destinada a lidar com a regulamentação da matéria, em especial da segurança e da sustentabilidade – aspectos relacionados. Até agora, esses aspectos têm impedido a indústria de falar com uma só voz em fóruns como o Comitê das Nações Unidas Para o Uso Pacífico do Espaço Exterior [COPUOS] e seu Subcomitê Jurídico.”

A regulamentação desse campo, acredita Fenema, seguirá vindo, sobretudo, de governos nacionais na forma de leis, políticas e práticas domésticas, e de acordos bilaterais, influenciados em certa medida por elementos do soft law [direito não obrigatório] (e vice-versa). Esta situação, diz ele, provavelmente só vai mudar quando os passageiros de rotina dos transportes espaciais [turistas] e a consciência de seus próprios interesses (quanto às ameaças do lixo espacial, por exemplo)... forçarem a indústria e o governo, desafiados, a agir em conjunto.

Handbook of Space Law, vale frisar, é extremamente rico em referências bibliográficas e factuais. Eu o recomendo a quem estuda Política e Direito do Espaço e das Atividades Espaciais. O único problema para quem vive num país em desenvolvimento, como o Brasil, é o preço do livro. Pela Amazon, ele normalmente custa 345 dólares (R$ 1.380,00), uma pequena fortuna, embora haja, segundo a consulta que fiz em 12 de fevereiro, 12 exemplares sendo vendidos a 260,98 dólares (R$ 1.043,92), o que não é propriamente um consolo, mas permite uma economia de R$ 336,00. E se um grupo de interessados olhar essa compra como investimento, talvez valha o sacrifício.

* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: jose.monserrat.filho@gmail.com.
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